A “loucura” no conhecimento
- Demi Simão
- 8 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de mai. de 2024
Quem lê demais fica doido?
Quando eu era só um adolescente, com uns poucos 12 ou 13 anos, frequentava semanalmente a biblioteca pública da minha cidade. Era uma biblioteca bastante pequena, com pouca variedade de livros amontoados uns sobre os outros. Eu costumava pegar histórias em quadrinhos da Mafalda, me divertia lendo Asterix e Obelix e histórias desenhadas de contos infanto-juvenis. Mas minha curiosidade ia sempre além daquelas obras de divertimento quase infantil. Eu olhava com grande interesse o pequeno setor de livros sobre mistérios do mundo, alguns deles um tanto esotéricos, livros de História Geral e algumas obras de Literatura Universal. Ainda assim, eu me limitava às obras mais simples, embora profundas, como O Pequeno Príncipe e correlatos.
Até que um dia eu peguei um livro de cerca de 150 páginas sobre o Big Bang. Uau!
Minha mãe gostava muito que a gente estudasse e lesse. Ainda mais ela que não pôde ter as mesmas oportunidades de estudo que os filhos e, por isso, insistia muito na nossa educação. Ai de quem tirasse nota baixa nas provas! Mas ela ficava preocupada quando me via lendo muitos livros. Segundo a crença popular, “quem lê muito fica doido”. Não posso negar que haja um pouco de verdade nisso, se considerarmos “doido” aquele que, como o homem do mito da Caverna de Platão decidiu olhar para além das esmaecidas sombras do fundo da caverna. “Quem lê muito pensa demais”, dizia ela, “e isso deixa a pessoa doida”. Havia, inclusive, um caso trágico na minha pequena cidade, de um conhecido nosso que tentou ler a Bíblia de cabo a rabo em uma semana. Poucos dias depois, ele realizou um suicídio. Se há correlação direta entre os dois fatos, ainda não sei, mas certamente houve muito sofrimento mental no pobre rapaz.
De todo modo, eu peguei um livro de Física sobre o surgimento do Universo. Era um livro já velho, quase totalmente em preto em branco, inclusive as gravuras (imagine gravuras de galáxias em preto e branco! Que loucura!), que descrevia o conhecimento que os cientistas já tinham na época a respeito do surgimento do universo e sua evolução cósmica. O livro descrevia os processos físico-químicos dos primeiros milissegundos após a grande explosão, a expansão e resfriamento dos gases cósmicos, a formação das primeiras estrelas, planetas, galáxias ao longo dos bilhões de anos… No glossário haviam as descrições sobre o que era um buraco negro, uma supernova, uma anã branca, um asteróide, enfim, uma miríade de conceitos da astrofísica e de corpos celestes. O livro era fantástico, embora estivesse muito distante da esplêndida série Cosmos de Carl Sagan ou de Cosmos: uma odisséia do Espaço-Tempo, com o ilustre Neil deGrasse Tyson.
Eu lia aquele livro em casa, caminhando nas ruas próximas, debaixo de uma árvore, me esforçando para entender tudo aquilo e ao menos decorar os nomes dos corpos celestes, os eventos cósmicos e os processos estelares. Mas devo confessar, eu tinha muita dificuldade. Não sei se foi por tanta insistência de minha mãe ao me ver o tempo todo com aquele livro ou pela minha incapacidade de absorver aquele conteúdo, que chegava a me causar dor de cabeça, eu devolvi o livro à biblioteca sem ter lido mais de 60 páginas. Eu costumava entregar um livro sem terminar de lê-lo apenas quando eu não gostava. Quase nunca por não ter entendido. Entendendo ou não, não me furtava do prazer da leitura.
Meu gosto por ciências espaciais perdura ainda hoje, embora minha inabilidade com a física seja evidente. Já quis ser astronauta, como quase toda criança, mas ainda não deu certo. E acredito que não dará, a não ser que esses bilionários facilitem esse sonho para amadores. Entretanto, minha história com esse livro foi marcante, não só pelo seu conteúdo e dificuldade, como pelo que ouvia minha mãe dizer: “quem lê demais fica doido”. Jamais a julgarei por esse ponto de vista. Tenho certeza que ela nunca disse isso por maldade ou para fazer limite ao meu aprendizado, muito pelo contrário. Mas essa fala revela uma ideia muito comum do senso comum, e que, de certa maneira, comporta um pouco de sentido.
A leitura é uma prática libertadora. Poderia citar centenas de autores clássicos que assim diz. Quando se lê, saímos do nosso mundinho cotidiano e acessamos outras realidades, quase como as crianças que atravessam o armário no fantástico mundo de Nárnia ou como Alice no país das maravilhas quando atravessa o espelho. A leitura é uma atividade tão envolvente, que é mediada por prazer, encanto, que aguça a curiosidade, alimenta sonhos, transforma realidades e também nos transforma.
A postura filosófica basilar é a dúvida, que gera curiosidade. O desejo pelo saber nos movimenta para além daquilo que já construímos como conhecimento aprendido na nossa experiência de vida, e nos leva a acrescentar saber a partir da perspectiva do outro, do saber que o outro dispõe para o nosso conhecimento. Quando aprendemos, ampliamos nosso campo de visão, fortalecemos as sinapses do nosso cérebro e transformamos nossa forma de ver e julgar a realidade. Quando lemos um livro, compartilhamos com o autor seu ponto de vista, seus pensamentos, suas crenças, seu modo de ver o mundo, ainda que não concordemos com ele. Quando aprendemos, podemos nos permitir olhar e julgar a realidade com um postura mais crítica, menos limitada aos esquemas de pensamentos anteriores já consolidados, e ponderar melhor a respeito de nossos julgamentos e posturas.
O “doido” ou o “louco” é aquele sujeito que no imaginário social está fora da normalidade geral de agir e pensar. Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, em sua obra A História da Loucura (1972) apresenta como o conceito e visão sobre a loucura mudou com o passar do tempo, indo de pessoas que possuíam algum saber oculto para aqueles que estão privados da razão. Erasmo de Roterdã, filósofo dos séculos XV e XVI compôs a imponente obra Elogio da Loucura, em que descreve que a loucura domina os homens muito mais que a própria razão.
Na visão social do “Leitor que se torna louco” por ler e conhecer, vemos não apenas um julgamento sobre a possível inutilidade da leitura, como um medo do que o conhecimento pode gerar no sujeito que o acessa. O medo de tornar-se louco a partir da leitura parece ser o medo de dissipar o véu da ignorância e ver a realidade de uma forma mais clara e real, para além das crenças já construídas a respeito dela, que em sua grande maioria, servem para nos dar segurança diante do desamparo que a “verdade nua e crua” nos gera. À psicanalista Melanie Klein (1982-1960) é atribuída uma bela frase: “Quem come da árvore do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso”.
O acúmulo de saber pode deixar as pessoas um tanto mais introspectivas, enquanto outras se tornam mais arrogantes, devemos confessar, mas ele pode ser imensamente libertador e angustiante ao mesmo tempo. Nós buscamos segurança naquilo que acreditamos e podemos até mesmo agir violentamente quando alguém questiona nossas formas de pensar. O extremismos ideológicos são prova disso. No entanto, passada a angústia inicial de fazer vacilar o saber antigo para criar um novo saber, como fez Renè Descartes (1596-1650), sentimo-nos muito mais livres e autônomos, e poucos nos importamos em sermos chamados de “loucos”. A loucura do saber é um deleite para um ignorante que deseja sair da normalidade do saber coletivo.
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