O Amor - entre Camões, Freud e os gregos
- Demi Simão
- 8 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de mai. de 2024
Ah, o amor! Quantas canções foram cantadas em sua homenagem! Quantos poemas foram dedicados a ele! Quantos suspiros foram dados tendo-o como causa! Sim, o amor, comparado a tantas coisas, e ainda assim, tão difícil de ser nomeado. Apesar das diferentes línguas que o descrevem em tempos históricos diversos, o amor encontra elementos comuns em todas essas realidades.
Luís de Camões, em seu célebre poema sobre o Amor, chega a dizer:
“Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.”
Encontramos na literatura clássica uma importante obra que versa sobre o amor: O Banquete de Platão, escrito no séc IV a.C. Nele, os homens reunidos para um banquete na casa de Agaton tecem seus elogios a Eros, a divindade grega do amor. Entre os vários discursos, ganham destaque o de Aristófanes e o de Sócrates.
Aristófanes, comediante, narra uma história que diz que no início do mundo os seres humanos eram duplos, andrógenos, e possuíam um corpo composto de todos os membros duplicados. As potencialidades que esses corpos possuíam possibilitaram que eles subissem ao monte Olimpo, o que gerou irritação a Zeus, que com um raio de fúria, dividiu os corpos em dois. Dessa forma, cada corpo dividido passaria toda a vida em busca de outra metade que o completasse. O amor, dessa forma, é aquilo que, segundo Aristófanes, “procura de dois fazer um só, e assim restaurar a antiga perfeição”.
O filósofo Sócrates, por sua vez, conta outra história a respeito da origem de Eros, vinculando-o à filiação de Penia, a Pobreza, e a Poros, o deus Esperto. Sendo Eros, o amor, filho da pobreza, sua vida era pautada na busca do que ele não possuía. Segundo o filósofo, não se ama o que já se tem, ama-se apenas aquilo que ainda não se possui, pois se possuísse, não haveria necessidade de amar, e portanto, desejar. O amor, então, compreendido nesse ponto de vista, é a busca pelo que não se tem, o desejo de encontrar em algo aquilo que satisfaz, ainda que isso não o complete, como pretendia dizer a história contada por seu colega na história anterior.
Quando compreendemos a sexualidade humana na perspectiva da psicanálise, conseguimos traçar um certo paralelo com esses dois filósofos e com o poeta luso. Para Freud, toda criança, após o nascimento, encontra na mãe ou em que lhe faz os cuidados, um ser de quem recebe atenção e afeto, e se apega a esse ser, tornando-o um objeto de direcionamento do seu interesse e desejo, o que podemos chamar, também, de amor.
Para entender isso melhor, é preciso considerar que toda pessoa é marcada pelas pulsões corporais que incidem sobre seu psiquismo. A libido, junto à pulsão, atua como a energia psíquica do sujeito, e se endereça a determinados alvos, a que chamamos de objetos. A pulsão tem atuação constante no sujeito, e libido é a energia de fluxo contínua que busca se endereçar e fixar a algo, seja ao próprio sujeito, seja a objetos exteriores. No início do desenvolvimento, a libido se endereça majoritariamente ao corpo do bebê e depois ao seu cuidador, em especial à mãe, e posteriormente a outras pessoas e objetos. Sucintamente, o objetivo da libido é satisfazer as pulsões do sujeito, e com isso gerar prazer, corporal e/ou psíquico.
Ao longo da vida, o sujeito escolhe diversos objetos a quem endereçar sua energia e se satisfazer. Em um determinado momento da vida, a mãe, ou a pessoa responsável pelo cuidado, irá deixar de ser o destino majoritário de endereçamento da libido, e se tornará um objeto perdido, para sempre. Por ter sido um objeto tão importante, o sujeito buscará, de diversas formas, restabelecer o vínculo com esse objeto, ou com a satisfação que ele lhe dava. Nisso constitui-se um sintoma psíquico do sujeito: a busca de restabelecer um objeto perdido, substituindo-o por outros objetos.
Nesse ponto, podemos entender o amor como um processo de direcionamento de energia libidinal a um objeto. Ninguém está furtado disso. Como diz Lacan, importante psicanalista, “todo mundo demanda amor”. O desejo é o propulsor do amor, e visa, de algum modo, ser satisfeito, seja no corpo, na imaginação, nos sentimentos, nas fantasias ou nos modos próprios do sujeito se satisfazer.
As pessoas, muitas vezes, procuram uma análise para falar de suas decepções amorosas. E uma decepção amorosa, ou seja, a quebra de um vínculo com um objeto de amor, é impactante para um sujeito. E essa decepção pode ser até mesmo em nível imaginário, com a perda de um amor “Platônico”, com quem nunca se teve um contato corpo a corpo, mas cujo desejo foi completamente real no psiquismo do sujeito.
Amar é, portanto, colocar algo, especialmente alguém, como destino do nosso desejo, da nossa vontade, e do nosso bem querer. É buscar algo que não se tem, como diz Platão. Ama-se o que não se tem. Ama-se porque existe uma falta, a falta constitutiva de todo ser humano. É a falta que move o desejo.
Em certa medida, o amor, como diz Camões: “É um não querer mais que bem querer”. O amor permite coexistir sensações e afetos contraditórios, antíteses, paradoxos… porque, em essência, o amor não comporta sentido. É colocar-se a serviço do objeto amado, e por vezes, perder a linha da razão, e agir apenas pela paixão, que como diz Lacan, é uma catástrofe psicológica. No dizer de Camões:“É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.”
Pelo amor, segundo a narrativa de Sócrates no Banquete, os seres humanos são propensos à imortalidade. Os laços construídos pelo amor cumprem também a função de nos perpetuar no Outro, para além dos limites próprios do nosso corpo e existência. O amor é também uma saída para o desamparo humano. Ao termos perdido nosso primeiro objeto de amor, ficamos desamparados, e vivemos num ciclo constante de procura pela suposta completude, quase como Aristófanes narrou em seu conto. Como disse o grego, o amor é a busca constante pelo que se perdeu.
O amor, dentre todas as experiências humanas, é uma das que mais nos marca, a ponto de tentarmos torná-la infinita. Exemplo disso é o fato comum de que as pessoas, de um modo geral, em situações extremas ou de risco de morrer, de deixar de existir, tentam sempre fazer uma declaração de amor a alguém. Para muitos, o “eu te amo” são as últimas palavras que desejam que saiam de sua boca antes do fim da vida. O amor nos eterniza, embora esteja tão marcado pela finitude e pela falta.
CAMÕES, Luís de. Rimas. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1953.
FREUD (1915b). As pulsões e seus destinos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (ESB, 14).
LACAN. (1957-1958). O seminário: livro 5: as formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
PLATÃO. Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2002. (Coleção a obra prima de cada autor.
Tradução de Jean Melville).
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