Quanto você vale? Qual sua nota?
- Demi Simão
- 8 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de mai. de 2024
Sobre o valor que recebemos dos outros e o que damos a nós mesmos
A instigante série Black Mirror da Netflix possui um episódio, que como os demais, provoca forte inquietação nos espectadores. Trata de episódio “Queda Livre” da 3ª temporada. Nele mostra uma sociedade em que cada pessoa avalia as outras com quem interage ao longo dia, atribuindo-lhes notas de 0 a 5. Cada pessoa dá e recebe notas das demais, e cada uma possui um valor médio das notas que lhe foi atribuída. As pessoas com as maiores notas, de 4,5 acima, são as mais queridas, as “popstar”, e as notas que elas dão têm um peso maior no valor médio de quem recebe. As pessoas com notas inferiores a 2, consequentemente, são pessoas de baixa aprovação social e estão, portanto, nas classes mais baixas de status social.
Algo semelhante a isso, mas com um caráter um pouco diverso, acontece nos aplicativos de transporte, como Uber, 99 e outros, em que o passageiro atribui estrelas ao motorista, cuja nota corresponde a valores entre 1 a 5. O mesmo serve para os motoristas em relação aos seus passageiros. Avaliações como essas já são comuns no mundo digital moderno. Podemos atribuir estrelas e valores no Google Maps aos locais que frequentamos, às pessoas que prestam serviço mediado por aplicativo, aos produtos que compramos, enfim, a tudo o que pode ser avaliado.
Recentemente, algumas plataformas de seleção de candidatos criaram algoritmos de avaliação automática de perfis por meio de Inteligência Artificial, em que cada currículo avaliado recebe uma nota, de 0 a 100, de modo que os que possuem maior nota são os perfis que mais correspondem ao cargo da vaga em questão. Estratégias como essa, vinculadas a metodologias de People Analytics, baseada em dados, também atribuem notas aos profissionais, quer seja em fase de seleção, quer em acompanhamento de desenvolvimento dentro das empresas. No mundo do trabalho, as pessoas sempre possuem algum tipo de valor.
Atribuir valor às pessoas e coisas não é tanto um problema em si. Todas as nossas interações envolvem algum tipo de atribuição de valor, ainda que de forma simples, como “bom” ou “ruim”. Sabemos dizer o que é melhor ou pior em um produto, qual pessoa se adequa mais ou menos aos nossos interesses e objetivos, o que ou quem tem maior valor ou não. Entretanto, nossa avaliação, por vezes superficial das pessoas e coisas, dá margem à dúvida, o que vem a ser algo muito bom, pois nos permite mudar de opinião e perceber que algo não era tão ruim como pensávamos ou não tão bom como achávamos que era.
Porém, quando levado ao extremo e a situações de pouca flexibilidade, isso pode constituir um grave problema social e psicológico. Um ponto de partida é: Quais são os critérios de avaliação de algo? A forma, a metodologia, como avaliamos algo é adequada? O resultado obtido é real e fidedigno? Em pesquisa científica, esse é um grande problema: saber estabelecer os critérios e a metodologia para avaliar alguma coisa. No cotidiano da vida, as pessoas se valem de suas formas próprias de encarar o mundo, seus esquemas de pensamento, seus preconceitos e opiniões para avaliar as coisas e pessoas.
Um ponto secundário a isso é: Para que serve o valor que damos a algo? O que será feito com isso? Quando damos valor econômico a algum produto, sabemos como comercializá-lo, qual seu custo e o que é preciso para adquiri-lo. Quando damos juízo de valor a alguém, normalmente podemos estabelecer se aquela pessoa atende ou não aos padrões ideias que valorizamos, se queremos tê-la perto ou distante de nós, se queremos estabelecer relação de confiança ou não. Contudo, sempre fazemos um juízo adequado de valor sobre as pessoas? Até que ponto podemos ser injustos em relação a isso?
Por fim, um terceiro ponto, mas não último, pois a questão não se encerra, é sobre como algo ou alguém pode ter o seu valor mudado. Ou melhor, é possível mudar o valor de alguma coisa? Certamente que sim, podemos dizer. Algumas coisas ganham ou perdem valor de acordo com o tempo. Nossas percepções sobre as pessoas mudam com o tempo também. Mas estamos sempre abertos a questionar nossa avaliação sobre alguma coisa? Estamos abertos a ver algo a mais naquilo que julgamos?
Primeiramente, parece difícil conceber um mundo em que as pessoas possuem um valor médio, uma nota, que possa ser usada como forma de apresentação para todos os demais. Nossos critérios de avaliação humana são diversos. Somos marcados por visões de mundo e preconceitos. Valorizamos determinadas pessoas pois elas reforçam nosso viés de confirmação, ou seja, fortalecem aquilo que acreditamos. O que para alguns tem muito valor, como formato do corpo, cor dos olhos, escolha profissional, gosto musical, preferência de time de futebol ou partido político, pode não ter nenhum valor para outra pessoa. Há quem goste de sorrir o dia inteiro, há quem goste de estar mais introspectivo. Há aqueles que conversam com qualquer um e há quem pouco se relaciona com os demais. Quem tem mais valor?
Em segundo lugar, quando pensamos na atribuição de valor a alguém, tomamos como ponto basilar, ainda que pouco consciente, a noção de que há algo de muito valor, o valor 100 ou as 5 estrelas, e algo de baixíssimo valor, como o zero ou zero estrelas. É possível obter um perfil 100%? E ainda mais, 100% em que? Pensar em algo com um valor total, que atinge o limite - se há um limite - parece ser bastante ideológico. Existe o ápice da humanidade, da beleza, da educação, da sabedoria, da inteligência? Quem seria a pessoa modelo a partir da qual todos os demais seriam comparados e avaliados? Nossos modelos são pulverizados, diversos, e se podemos dizer, nossos ídolos também.
Atribuir valor a alguém, como acontece no episódio da série, é o que media as relações entre as pessoas e é o que lhes dá uma identidade perante as demais. Contudo, o esforço mental que algumas pessoas precisam fazer para ser bem avaliadas pelos demais, como a personagem central do episódio, é descomunal. Sorrisos fáceis, de orelha a orelha, voz macia, perfume agradável, roupas bonitas, comportamentos socialmente desejáveis, enfim, uma infinidade de mecanismos para ser agradável e bem avaliada pelos pares. Qual o preço disso para o sujeito?
Quem não se adequa aos padrões esperados de aprovação social são tacitamente excluídos. Uma pessoa de nota 2 ou menos é um periférico da sociedade. Um corpo menos artístico, um humor um pouco irritável, um comportamento pouco agradável é condição suficiente para alguém ser desvalorizado em relação aos padrões ideais.
A avaliação que fazemos das pessoas pode muitas vezes ser injusta e fortalecer formas de exclusão. O custo de se manter com valor desejável para as demais pessoas pode ser muito alto para um sujeito. Repensar nossos critérios e a importância que damos a determinadas formas de atribuição de valor e nota para algo ou alguém é um caminho sensato e necessário, especialmente quando imaginamos que o valor que alguém nos atribui pode ser imensamente diferente do valor que atribuímos a nós mesmos.
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